Ruy-Cavalcante

Intervalo Cristão

Narcisismo evangélico

Por Ruy Cavalcante

 

A palavra “narcisismo” é derivada da Mitologia Grega. Narciso era um jovem e belo rapaz que rejeitou a ninfa Eco, que desesperadamente o desejava. Como punição, foi amaldiçoado de forma a apaixonar-se incontrolavelmente por sua própria imagem refletida na água.

O narcisismo excessivo dificulta o indivíduo a ter uma vida satisfatória, é reconhecido como um estado patológico e recebe o nome de Transtorno de Personalidade Narcisista. Indivíduos com o transtorno julgam-se, dentre outros, grandiosos e absolutamente especiais.

Posto isso, gostaria de falar um pouco da característica narcisista de parte da comunidade evangélica, que tem seus primeiros sintomas ainda no início do século passado, mas que encontra seu auge totalmente estabelecido no movimento neopentecostal dos anos 2000 (o neopentecostalismo não surge nos anos 2000, mas alcança seu auge nesse período).

É incrível como o consenso entre cristãos que compõem esse movimento é de que somos de uma grandiosidade extrema. Expressões como “Eu profetizo”, “Eu declaro”, “Eu decreto”, “Eu ganho almas”, “Eu determino”, “minhas palavras (ou nossas palavras) tem poder”, e coisas afins, passaram a fazer parte do “Canon” evangélico e são ditas com pompas de autoridade absoluta.

O mais espantoso é que mesmo nas igrejas mais tradicionais e históricas encontramos traços dessa patologia, pois é algo extremamente infectante. Passamos a acreditar de fato que temos tanto poder e grandiosidade assim.

Nossas músicas cantam isso, nossos púlpitos anunciam isso e em nossas orações esbravejamos palavras de ordem espirituais, como se pudéssemos de fato “trazer coisas a existência”, ou exigir alguma coisa dos anjos ou mesmo de Deus.

A coisa fica ainda mais séria quando vemos líderes e irmãos anunciando maldições sobre a vida de outros, declarando derrotas na vida daqueles que discordam de suas afirmações ou que questionam seus ensinamentos, sob a suposição de que possuem tal poder. Pior ainda por ser algo que se prolifera e, quando menos percebemos, também estamos ameaçando com maldições espirituais aqueles que não se encaixam em nosso padrão de convivência.

Tudo fruto dessa síndrome narcisista que tem tomado conta de nossa vida, fazendo-nos acreditar que somos poderosos ou que somos mais importantes do que outras pessoas, especialmente mais importantes do que outras pessoas que não professam a nossa mesma crença (não chamo aqui de fé, pois a fé cristã genuína nos faz servos, não senhores, humildes, não altivos ou egocêntricos).

Além disso, o desejo hoje parece ser o inverso do ensinado por Cristo, quando diz:

“Jesus os chamou e disse: “Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos”. (Marcos 10:41-44)

Em muitos lugares hoje ensinam o contrário, ensinam que somos especiais, que o líder deve ser honrado até mesmo com suas finanças, que temos autoridade sobre a vida um do outro. É a velha história, manda quem pode, obedece quem tem juízo. E todos querem obedecer, não apenas porque são humildes, mas por desejarem um dia serem obedecidos igualmente, por outros irmãos novatos no processo.

Tudo é um jogo de interesses e de alienação, todos querem ser servidos, todos se acham excepcionais. Não se deseja mais ser o servo do irmão, mas o líder de sua vida. E a roda não para de girar, o servo (escravo) de hoje se submete a isso para ser honrado com a liderança de amanhã.

Essas coisas são muito estranhas para mim, pois não encontro nada disso no Evangelho. Por esse motivo também não entendo a relutância em abandonar esse tipo de pensamento, em se submeter à verdade bíblica, aos exemplos e palavras de Cristo.

Por hora gostaria apenas de declarar o seguinte: Nós não temos autoridade, nossas palavras não têm poder e nós não precisamos, nem devemos, ser temidos.

Deus tem autoridade e faz o que quer, a quem quer. A palavra que tem poder é a de Deus, jamais a nossa, salvo quando apenas declaramos aquela.

Precisamos urgentemente voltar a cantar canções que engrandeçam a Deus e não a nós mesmos, pregar e ouvir o anúncio de palavras que valorizem Cristo e não o nosso ego. Servir e não sermos servidos, tendo este princípio um peso e uma importância muito maiores para aqueles que possuem funções de liderança dentro do corpo, dentro da igreja.

E que Deus tenha misericórdia de nós todas as vezes que desejarmos o contrário disso, nos fazendo retornar à sanidade espiritual.

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