Na contramão da lógica industrial, o artesão Manoel Bezerra, de 78 anos, transformou o quintal de casa, em Cruzeiro do Sul, em um centro vivo de produção e conhecimento. Sem formação acadêmica, mas com décadas de prática, ele já orientou pesquisadores, deu oficinas para professores universitários e viu sua técnica artesanal ser valorizada por quem estuda os potenciais da Amazônia.
O conhecimento começou cedo, ainda na infância. Aos cinco anos de idade, no sertão do Ceará, Manoel acompanhava a mãe na coleta de cipós, moía os frutos manualmente e ajudava a extrair óleos para a fabricação de sabão. “Ela fazia um sabão perfeito para lavar roupa, tomar banho, tudo. Eu aprendi ajudando”, lembra.
Foi só décadas depois, já morando no Acre, que ele percebeu o potencial da floresta para aplicar os mesmos saberes. “Aqui tem uma riqueza que nem todo mundo conhece. Cada dia que eu trabalho, eu aprendo mais”, afirma. Manoel chegou ao estado em 1975, depois de passar por Maranhão, Pará, Goiás e Rondônia. Estabelecido no Vale do Juruá, passou a trabalhar com buriti, açaí, copaíba, patauá e breu branco.
A produção é 100% artesanal. Os equipamentos — prensas, batedeiras, panelas — foram feitos por ele mesmo. O trabalho é feito com apoio de até seis pessoas e envolve também as famílias que coletam frutos nas margens dos rios. “Tem dia que chegam com 30 sacas de buriti. Eu preparo, deixo de molho e começo a extração do óleo. Com isso, a gente faz o sabonete, faz o sabão. Tudo daqui.”
Os óleos extraídos por Manoel são vendidos em pequena escala, mas com alto valor agregado. O de buriti, por exemplo, pode chegar a R$ 250 o litro. Já o de breu branco, mais raro, é comercializado a R$ 50 por 5 ml e pode valer até o triplo em centros urbanos do Sudeste.
Além da renda, o ofício também gerou educação. Foi com o dinheiro do sabão e dos óleos que Manoel criou os filhos. Um se formou em Direito, outro é professor universitário com mestrado e doutorado. “Eles não seguiram meu trabalho direto, mas me ajudam de outras formas. Meus filhos têm diploma porque eu tirei óleo do mato”, diz, com orgulho.
A trajetória de Manoel virou referência. Em Xapuri, ele já foi convidado para ensinar técnicas a turmas de química e farmácia. “Eu fui com coragem. A doutora me disse: o que o senhor faz, a gente não faz. O senhor também é doutor.”
Com olhar atento e mãos calejadas, Manoel segue produzindo. “Não sou empresa, sou artesão. Mas vivo disso e formei minha família com esse trabalho. Isso ninguém me tira.”
Do sertão à floresta: uma vida em travessia
A chegada de Manoel Bezerra ao Acre é parte de um capítulo maior da história brasileira: o êxodo silencioso de famílias nordestinas em busca de sobrevivência. “Teve uma seca forte nos anos 70. A agricultura quebrou, perdemos tudo. Aí seguimos com outras famílias pra tentar a vida aqui”, lembra. A travessia começou no Ceará, passou por Maranhão, Pará, Goiás e Rondônia, até chegar ao Vale do Juruá. Desde então, o artesão construiu suas raízes na floresta.
‘Meu pai disse: já sabe escrever, agora vai para o roçado’
Manoel nunca terminou os estudos. Segundo ele, passou três vezes pelo primeiro ano, quatro pelo segundo. “Aprendi só o básico pra escrever carta. Meu pai achou que tava bom. A escola era a roça”, conta. Hoje, o autodidata é referência na produção artesanal de óleos e sabões. “Já dei aula pra doutor. E fui chamado de novo. Eu tremi na primeira vez, mas fui. Porque o que eu sei, eu sei fazendo”, afirma. Para ele, a floresta ensina mais que qualquer sala de aula.
Dos aprendizes à cooperativa: o saber que forma lideranças
Além dos filhos, Manoel também ensinou jovens do próprio bairro, que hoje vivem da produção com óleos e frutos da floresta. Um de seus aprendizes se tornou profissional e o irmão dele, José Francisco, é atualmente presidente da Cooperativa Coca-Fruta, em Mâncio Lima. “Eu fico feliz de ver isso. A gente planta saber, e mais cedo ou mais tarde, ele floresce”, resume. O artesão continua ensinando, repassando técnicas e incentivando quem quer aprender.