Artigo
A nota pública divulgada na segunda-feira, 9, pelo governo do Acre, após a denúncia escancarada pelo programa Fantástico, é um documento que deveria causar mais indignação do que alívio. Ao invés de assumir com coragem a gravidade do que foi mostrado em rede nacional — crianças tendo aula em um antigo curral, sem paredes, sem piso, sem água e com baratas na geladeira da merenda —, o Estado escolheu minimizar o inaceitável e relativizar o abandono.
A tentativa de normalizar a situação é evidente no trecho em que a Secretaria de Educação afirma que a realidade da Escola Rural Limoeiro “não é exclusiva do Acre”, mas que se repete “em toda a Amazônia Legal”. Ora, é justamente por essa lógica perversa de comparação com o pior que a desigualdade se perpetua. Se há miséria em outros estados, então está tudo bem conviver com ela no nosso?
Não está. E não pode estar
É do poder público que se espera compromisso, ação, gestão eficiente e prioridade absoluta para quem mais precisa. Enquanto crianças estão com os pés na lama, varrendo chão de terra batida, carregando balde para dar descarga em banheiro improvisado, e sonhando em ser médicas, policiais, veterinárias — o Estado cita milhões em investimento como se isso, por si só, fosse suficiente para justificar a ausência do mínimo.
O que a nota revela é uma grave desconexão entre os números que a burocracia exibe e a realidade que a população vive. O governo menciona que “investiu R$ 70 milhões na educação do campo”, que entregou “17 novas escolas em 2024”, e que “420 escolas do campo e indígenas estão em funcionamento”. Mas nenhuma dessas estatísticas foi capaz de evitar o que o Brasil inteiro viu: a brutalidade de um Estado ausente, onde a dignidade foi substituída por improviso e resistência popular.
É preciso dizer com todas as letras: não há nenhuma justificativa aceitável para o que foi mostrado no Fantástico. Não há orçamento, logística ou “complexidade amazônica” que possa ser usada como escudo para encobrir a negligência. Quando o governo decide assumir a responsabilidade pela educação, ele deve fazê-lo com planejamento, estrutura e presença. Ou que tenha a honestidade de dizer que não está à altura da tarefa.
Os moradores do Limoeiro, em Bujari, não pediram luxo. Pediram uma escola com parede, um piso firme, água encanada, merenda com higiene e um transporte escolar que não dependa de cavalos e das pernas de adolescentes.
O que o governo oferece, em contrapartida, é um cronograma de 40 dias, uma promessa genérica de que “outras escolas estão sendo construídas” e uma frase lapidar: “A educação do campo é uma prioridade permanente”. Se isso é prioridade, imagine o que seria negligência.
Não se trata de fazer política com a dor — trata-se de fazer jornalismo com compromisso. A função da imprensa é lembrar ao poder público que ninguém governa para estatísticas, mas para pessoas. E neste caso, para crianças que, mesmo na miséria institucionalizada, continuam sonhando com um futuro que talvez nem exista se depender do Estado.
Essa nota, que deveria ser um pedido de desculpas, virou um retrato da omissão institucional e do distanciamento de uma gestão que prefere contabilizar escolas em planilhas do que pisar na lama para entender a urgência de quem está no chão.
O problema não é a Amazônia. O problema é quem acha normal o abandono em nome dela.