O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) tentou, entre abril e maio deste ano, distribuir kits de testagem para gripe aviária com material próximo da validade e certificados vencidos, às vésperas da confirmação do primeiro foco da doença em aves comerciais no Brasil. O caso, revelado após negativa da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul em receber os insumos, acendeu um alerta sobre a preparação real do governo federal para lidar com zoonoses de alta transmissibilidade.
O embaraço ocorreu semanas antes da confirmação oficial da gripe aviária do tipo H5N1 em uma granja de Montenegro (RS), em 15 de maio, o que resultou na suspensão do status do Brasil como livre da doença, conforme critérios da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA).
Segundo apuração da Folha de S. Paulo, os kits oferecidos pelo ministério incluíam frascos com solução de transporte viral (MTV), cotonetes estéreis (swabs), caixas de isopor e caixas homologadas para transporte aéreo de amostras biológicas. No entanto, os lotes enviados estavam com validade para maio e junho de 2025, e parte das embalagens estava com certificação expirada, impedindo seu uso legal.
Burocracia, desperdício e improviso
O Ministério da Agricultura alegou que o envio antecipado visava evitar desperdício, já que os materiais estavam próximos da validade. No entanto, ao oferecer apenas os frascos com solução líquida e recusar o fracionamento dos kits — conforme solicitado pelo governo gaúcho — o ministério travou sua própria operação. Mesmo após insistência da Secretaria da Agricultura do RS para receber apenas os itens utilizáveis, como swabs e caixas térmicas, a negativa partiu do próprio MAPA, que limitou a distribuição ao lote com validade prestes a expirar.
Resultado: nem os materiais aproveitáveis foram entregues, e os itens com validade curta ficaram inutilizados. A omissão institucional se agravou com o silêncio do ministério, que não respondeu aos questionamentos da imprensa até a publicação da matéria original.
O risco de testes imprecisos
O uso de kits vencidos ou mal conservados pode comprometer seriamente a acurácia dos exames, como explica o epidemiologista Anderson Sena Barnabe. “O uso inadequado pode gerar falsos negativos e atrasar a contenção de surtos, o que é crítico em zoonoses como a gripe aviária”, afirma o especialista, que reforça a importância da vigilância contínua com exames preventivos de qualidade.
O caso expõe não só um gargalo técnico, mas também uma crise de planejamento e execução em saúde agropecuária. Em maio de 2023, quando foi identificado um foco em animal silvestre no Espírito Santo, mais de 3.000 amostras foram coletadas em todo o país. Um ano depois, a estrutura federal falha ao preparar estados com maior risco epidemiológico, como o Rio Grande do Sul, justamente quando a ameaça se confirma.
Status suspenso e alerta nacional
Com o caso confirmado em Montenegro e registros paralelos em animais silvestres no zoológico de Sapucaia do Sul, o Brasil perdeu temporariamente o status internacional de livre da gripe aviária em aves comerciais. A medida impacta diretamente a credibilidade sanitária do país e pode afetar mercados de exportação de proteína animal.
Até agora, o Serviço Veterinário Oficial do RS fiscalizou 100% das 540 propriedades em um raio de 10 km do foco e revisitou as 19 com presença de aves mais próximas ao epicentro do surto.
Apesar da pronta reação estadual, a resposta federal patinou no básico: fornecer insumos em condições adequadas e no tempo certo.