Hospital do Rim: a virada histórica que mudou a nefrologia e elevou o padrão da saúde no Acre

Foto: Reprodução

O podcast Correio em Prosa recebeu, nesta semana, os fundadores do Hospital do Rim: Dra. Jarinne Nasserala, nefrologista e diretora técnica da unidade, e Alessandro Mendonça Nasserala, matemático e diretor executivo e CEO do Grupo Nasserala. Ao longo da conversa, o casal abriu os bastidores de uma história que mistura vocação, fé, empreendedorismo e uma dose grande de coragem e ousadia.

Durante a entrevista, os dois decidiram voltar ao início de tudo — à trajetória que antecede a clínica, o hospital e a expansão — para explicar como essa história começou.

“Eu tinha nove anos quando disse que seria médica, e nunca mais mudei de ideia”, contou a Dra. Jarinne. A decisão ganhou forma anos depois, quando ela foi morar em Fortaleza, estudou, voltou para Rio Branco e ingressou em Medicina na Universidade Federal do Acre (UFAC). Durante a residência em clínica médica, na Fundação Hospitalar, veio o encontro definitivo com a área que marcaria sua vida. “Me apaixonei pelos idosos da nefrologia. Eles me ensinaram sobre paciência, sobre tempo, sobre cuidado de verdade. Ali eu entendi que meu caminho seria esse”, relembra.

Com a especialização concluída, ela assumiu a nefrologia na Fundação, incluindo a coordenação do transplante renal. A rotina como servidora pública se somou, então, ao passo seguinte: o consultório próprio fora do hospital. “Nosso primeiro consultório foi em frente da minha casa, a clínica São Camilo”, relata. “Escolhi esse nome porque São Camilo é o padroeiro dos doentes. Ali eu atendia os pacientes da Fundação, começamos pequenininhos, mas eu já sabia que queria dar mais qualidade para eles.”

Enquanto isso, Alessandro seguia em outro universo: era professor de matemática. A vida do casal virou de ponta-cabeça em 2017, quando a crise na nefrologia pública atingiu o limite. “Chegou um ponto em que o Acre não tinha mais vaga para diálise”, recorda Alessandro. “Tinha gente que não tinha onde fazer. Não tinha mais pra onde empurrar esse problema. O próximo paciente que precisasse de hemodiálise ou ia para Porto Velho ou pra Cruzeiro do Sul. Ele não podia mais ficar em Rio Branco.”

Foi nesse contexto que nasceu a Clínica do Rim, inaugurada em 16 de junho de 2017, com apenas cinco máquinas Fresenius — marca que é referência mundial em diálise. A conquista, no entanto, não veio fácil. Mas, engana-se quem pensa que foi fácil a trajetória até essa data. Mas, como Jarinne e Alessandro pontuam, desistir não opção.

“Passei três anos negociando com a Fresenius. Eles diziam: ‘a gente não vende para o Acre, a gente não tem negócio com o Acre’”, conta Jarinne. “Eu respondia: ‘mas vocês vão ter, vamos conseguir’. Quando as máquinas chegaram, foi a realização de um sonho que eu carregava desde a especialização. Trazer aquele padrão de qualidade ao Acre, para os nossos pacientes, foi uma felicidade que eu não consigo descrever.”

As primeiras semanas tiveram apenas três pacientes, em meio a um cenário de desconfiança e previsões de fracasso. A escolha da equipe em trabalhar com insumos descartáveis de uso único, enquanto o padrão nacional ainda era a reutilização do material por até 20 vezes, gerou críticas e olhares desconfiados.

“Muita gente dizia que ia quebrar, que não ia fechar a conta, que era loucura usar tudo descartável”, lembra Alessandro. “Mas a gente focou na meta. Se tivesse que vender o carro pra começar, eu venderia. E vendi. Fiquei quatro meses andando de carona, dirigia van, mexia na osmose, cuidava do financeiro. Eu era o cara das contas, da bomba, da osmose e do volante ao mesmo tempo.”

A fé foi o eixo que sustentou o período mais difícil. “Tudo que a gente vai fazer, a gente coloca Deus na frente”, resume Jarinne. “Quando a gente tem Deus no coração, a gente pede direcionamento e Ele vai abrindo as portas. Às vezes uma porta fecha, mas Ele abre a janela. A missão é Dele, a gente só está executando.”

“A ideia era ter só uma sala pra fazer fístula e acesso vascular. Aí os colegas começaram a ver, visitar, usar o espaço, e uma coisa foi puxando a outra”, relata Alessandro. “Vieram as cirurgias que precisavam de internação, tivemos que comprar o espaço ao lado, criar apartamentos. Depois veio o laboratório, porque hospital sem laboratório 24 horas não existe. Depois a lavanderia. Quando a gente viu, a gente já tinha um hospital de fato.”

É aí que está o ponto de virada da história. A antiga Clínica do Rim, pensada para hemodiálise e poucos procedimentos, deixou de existir como clínica e deu lugar a uma estrutura hospitalar completa. Com apartamentos, serviço de internação, centro cirúrgico ativo, laboratório próprio e funcionamento 24 horas, o projeto passou a se consolidar formalmente como Hospital do Rim, com outro porte, outra responsabilidade e outro impacto sobre a saúde do Acre.

Hoje, o Hospital do Rim funciona como um complexo de saúde completo, com laboratório próprio, centro cirúrgico equipado com torres de vídeo 4K, serviços de imagem, lavanderia hospitalar e uma lista crescente de especialidades. A nefrologia continua sendo o coração do projeto, mas não está mais sozinha. Ginecologia, urologia, gastroenterologia, infectologia e outras áreas se fortaleceram dentro da estrutura.

“A tecnologia não para, e a saúde também não”, afirma Jarinne. “Nós trouxemos a hemodiafiltração, que é uma terapia mais moderna, já padrão em países como Estados Unidos e na Europa. Estamos nos preparando para oferecer diálise contínua em UTI, que por muitos anos só era possível em outros estados. E isso tudo é para que o paciente não precise mais pegar um avião para ter o melhor tratamento.”

Os resultados aparecem em números que chamam a atenção nacional. “Já chegamos a quatro mil cirurgias, com taxa de mortalidade de 0,09%”, destaca a médica. “É um índice comparável a grandes hospitais do país. É fruto de muito trabalho, de muita reunião, treinamento constante e de uma equipe que abraçou o propósito junto com a gente.”

A trajetória levou o Hospital do Rim a ser convidado a integrar a Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP), grupo que reúne instituições como Sírio-Libanês, Beneficência Portuguesa e Rede D’Or. “Não fomos nós que procuramos a entidade, foram eles que procuraram um hospital no Acre”, conta Alessandro. “Hoje a gente consegue comparar nossos indicadores com os dos grandes centros. Isso tira o Acre do isolamento também no conhecimento em gestão e segurança assistencial.”

Mas, para os dois, o verdadeiro diferencial está num aspecto que não aparece em gráficos nem em balanços: a humanização. “Todo paciente é o amor de alguém”, resume Jarinne. “Quando alguém procura um serviço de saúde, vem com medo, dor, estresse, às vezes com a família abalada. Ele tem direito de estar nervoso, angustiado. A nossa obrigação é acolher esse sentimento e devolver confiança, carinho, atenção e resolução. A humanização é um comprimido a mais no tratamento.”

Essa visão se desdobra na forma como a equipe é treinada, da recepção ao centro cirúrgico. “Se a assistência não for humanizada, não adianta o administrativo ser. A cara do Hospital do Rim é a assistência”, reforça Alessandro. “A gente prefere formar profissionais dentro da nossa cultura a simplesmente contratar alguém pronto que não entenda esse jeito de cuidar.”

Na nefrologia, os vínculos são ainda mais profundos. “O paciente de diálise vem três vezes por semana, às vezes passa mais tempo com a equipe do que com a família”, diz Jarinne. “A gente ri junto, chora junto, sofre junto. Quando a família abandona, a equipe vira família. É por isso que eu digo que amor, atenção e carinho são parte do tratamento.”

Esse vínculo fica evidente quando o assunto são as histórias marcantes. Para Jarinne, o capítulo mais forte é a retomada dos transplantes renais no Acre, após cinco anos de paralisação. “Eu vejo milagres praticamente todos os meses”, afirma. “Pacientes sem acesso, que teoricamente não teriam mais como fazer diálise, de repente conseguem um novo acesso e voltam a tratar. E o transplante, pra mim, é o gesto mais bonito da nefrologia: alguém que perde a vida, mas deixa um órgão para salvar outra pessoa.”

Desde 2024, o hospital já realizou 13 transplantes, com pacientes de Cruzeiro do Sul, Brasileia, Assis Brasil e outras cidades. “Tem gente que saiu da diálise, voltou a trabalhar, a estudar. Eu brinco que eu gosto de ver o xixi. Quando o paciente liga dizendo que tá urinando, eu fico feliz como se fosse um filho nascendo”, confessa.

Do lado de Alessandro, as lembranças mais fortes misturam perdas e conquistas. “A gente se torna amigo e confidente de muitos pacientes. Tem pessoas que marcaram tanto que até hoje, quando eu passo em determinado lugar, lembro delas”, diz. “É difícil, mas ao mesmo tempo é o que dá energia pra continuar. Na saúde, você faz o bem hoje e, muitas vezes, recebe a recompensa num sorriso, num obrigado, num olhar aliviado.”

A expansão para o interior também virou motivo de orgulho. A unidade de Brasileia, que começou com apenas dois pacientes particulares e seis meses sem contrato, hoje atende mais de 70 pessoas que antes precisavam viajar três vezes por semana até Rio Branco. E o próximo passo já está desenhado: Sena Madureira, terra natal do casal.

“Abrir em Sena é um projeto muito pessoal”, explica Alessandro. “Nós dois somos de lá. As pessoas cobram, porque sabem que somos filhos da cidade. Não é um projeto para ganhar dinheiro, é para devolver um pouco do que recebemos.”

Ao olhar para frente, os dois falam em legado. “Eu quero poder andar pelos corredores e ouvir alguém dizer: ‘essa ala aqui foi a doutora Jarinne que idealizou’”, diz a nefrologista. “Quero ver o serviço que a gente montou se perpetuando, com outras pessoas mantendo a mesma visão de humanização e qualidade.”

Os filhos, que já demonstram interesse pela Medicina, fazem parte dessa projeção. “O mais velho eu já levo para algumas reuniões, pra ele ver que não é fácil, conta Alessandro, rindo. “Tem aquela pesquisa que diz que o pai constrói, o filho mantém e o neto destrói. A gente quer quebrar essa lógica com formação, responsabilidade e propósito.”

No fundo, porém, a síntese que Alessandro faz revela o coração de tudo o que ele e Jarinne construíram: um projeto que nasceu da fé, ganhou forma no trabalho e hoje se sustenta no propósito de servir. “O Hospital do Rim não é nosso, é de Deus”, afirma. “Ele colocou a gente nesse lugar e nessa missão. Tudo o que a gente faz é usando as mãos e a cabeça que Ele nos deu. Se você tem um sonho e coloca esse sonho no mistério de Deus, Ele mostra o caminho. A nossa história é isso: uma obra de fé, trabalho e serviço.”

Da clínica em frente de casa ao complexo hospitalar que hoje atende quase 300 pacientes renais, realiza milhares de cirurgias e forma novos profissionais, o Hospital do Rim se consolidou como um ponto de virada na saúde do Acre. E, como reforçou Jarinne no final da entrevista, essa história ainda está em construção: “Nosso propósito é servir. A gente não vai levar nada daqui. Se a vida da gente puder ser instrumento pra aliviar a dor de alguém, já valeu a pena.”

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