Depoimentos emocionantes revelam traumas históricos causados por décadas de isolamento forçado no Acre
“Eu não tive infância. Não tive escola. Cresci limpando muro enquanto via outras crianças indo estudar. Vocês roubaram os meus sonhos.” O grito que rompeu décadas de silêncio foi feito por Marilsa de Aziz Macedo, filha de um homem diagnosticado com hanseníase e arrancado do convívio familiar quando ela tinha apenas seis meses de vida. O pai dela passou 34 anos internado compulsoriamente na colônia Souza Araújo. Enquanto isso, Marilsa e a mãe enfrentavam a miséria e o abandono no meio do seringal.
“Minha mãe ficou sozinha, com duas crianças pequenas, sem apoio, sem nada. O Estado nunca se importou conosco”, disse.
A fala corajosa emocionou e deu o tom do Tribuna Popular ocorrida na Câmara Municipal de Rio Branco, na terça-feira, 17. O encontro ocorreu a pedido do vereador João Paulo (Podemos), no qual debateu a Conscientização e Divulgação sobre a Semana Municipal de Combate à Hanseníase.
Outro relato emocionante foi o de João Pereira do Nascimento, que enfrentou o preconceito, a solidão e a violência institucional desde menino. Diagnosticado ainda jovem, ele foi isolado no meio da floresta, impedido de viver com a mãe.
“Me chamavam de leproso, jogavam pedra em mim quando ia tomar banho no igarapé. Eu tinha que tomar banho escondido, à noite, porque as pessoas tinham nojo, tinham medo”, contou. “Eu só queria poder subir a escada da casa da minha mãe. Mas eu não podia.”
João sobreviveu à exclusão e à falta de tratamento — ficou com sequelas físicas irreversíveis. “O que restou foi a marca da lepra no meu corpo, e uma saudade que nunca passou”, resumiu.
A dor da separação forçada de pais e filhos é um dos principais focos de atuação do Mohan hoje. Elenilson Silva de Souza, diretor nacional do movimento, foi incisivo: “estamos falando de filhos arrancados dos braços dos pais, sem aviso, sem alternativa. Isso não é história antiga: é uma ferida aberta que o Brasil ainda não teve coragem de encarar com seriedade.”
Segundo Elson Dias da Silva, coordenador estadual do Mohan, mais de oito mil processos ainda aguardam análise em Brasília, referentes à pensão vitalícia prevista na Lei nº 11.520/2007, que reconhece os danos causados pela política de isolamento compulsório. “Muitos dos requerentes já são idosos. Esperar mais é condená-los ao esquecimento”, afirmou.
A luta do Mohan também inclui a descentralização do atendimento à hanseníase, já que muitos pacientes no Acre ainda enfrentam dificuldade para receber diagnóstico e tratamento adequado. Socorro Martins, diretora de Vigilância em Saúde de Rio Branco, anunciou que cinco unidades básicas serão transformadas em polos de referência para atendimento e acompanhamento dos casos.
Apesar dos avanços pontuais, o que se ouviu foi um apelo coletivo por reparação e memória. “O que pedimos não é favor. É respeito. É justiça por tudo que nos tiraram: o colo, os direitos, a infância, os sonhos”, declarou Marilsa, com a voz firme e os olhos marejados.
MOHAN: 44 anos de luta por dignidade, memória e justiça
Fundado em 1981, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Mohan) nasceu da coragem de homens e mulheres que se recusaram a aceitar o silêncio e o esquecimento impostos pela política de isolamento compulsório do Estado brasileiro.
Ao longo de mais de quatro décadas, o Mohan se tornou uma das mais importantes vozes em defesa das pessoas diagnosticadas com hanseníase e de seus familiares, principalmente os filhos separados dos pais em nome de uma falsa proteção social.
Em 2025, o movimento completa 44 anos de atuação nacional, com presença em todos os estados brasileiros e diálogo permanente com o Ministério da Saúde e órgãos internacionais. Sua principal bandeira atual é a reparação histórica garantida pela Lei nº 11.520/2007, que concede pensão vitalícia às vítimas do isolamento compulsório — uma política que destruiu milhares de lares.
Além da luta por indenização, o Mohan atua na educação em saúde, no enfrentamento ao preconceito e na defesa da descentralização do atendimento à hanseníase, exigindo que os serviços públicos cheguem mais perto das pessoas — inclusive em áreas rurais, indígenas e periféricas.